NOVEDADES-ALAP #9
Migrações Bolivianas e sua territorialização na Região Metropolitana de Belo Horizonte (Minas Gerais/Brasil)
Juliana Ribeiro, Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO-UNICAMP)
Dezembro 2021
A presença da imigração boliviana na Região Metropolitana de Belo Horizonte-Minas Gerais (RMBH-MG, Brasil) ganhou relevância nos últimos anos, sobretudo a partir de 2009, com a regulamentação do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL, Bolívia e Chile. No livro Migrações Bolivianas, esse fenômeno foi compreendido à luz das histórias de vida dos migrantes, analisados como sujeitos coletivos, e das suas trajetórias migratórias, que se entrelaçam às escalas globais, regionais e locais.
As origens
A imigração boliviana para a RMBH-MG pode ser explicada pelos percursos migratórios e experiências anteriores estabelecidas a partir de redes familiares e de redes sociais. A principal porta de entrada no Brasil para migrantes bolivianas e bolivianos é São Paulo-SP e o espraiamento desses sujeitos acontece a partir da sua ocupação na produção têxtil, cuja classificação é denominada “decorador, costureiro, alfaiate, modista, peleteiro, tapeceiro ou assemelhado”. Destaca-se que é considerável a participação de estudantes, nessa população. Eles respondem por 11,66% do total desses registros; e as crianças que não estudam, respondem por 3,47%. Já os migrantes sem ocupação, respondem por 1,44%. Salienta-se também que 4,92% dos registros não apresentam informação sobre a ocupação do migrante. Esses números contribuem para aumentar a relevância da ocupação “decorador, costureiro, alfaiate, modista, peleteiro, tapeceiro ou assemelhado”, desempenhada por 60,58% dos migrantes dessa nacionalidade, ou seja, 80.853 dos 133.469 dos bolivianos identificados no Sistema de Registro Nacional Migratório (SISMIGRA) (Tabela 1).
É, portanto, para continuar atendendo à indústria têxtil e de confecções de roupas que os sujeitos da pesquisa migram de São Paulo para outras localidades brasileiras, entre elas a RMBH-MG. É certo que a RMBH ainda recebe poucos migrantes bolivianos se comparado aos municípios do interior de São Paulo e de estados que fazem fronteira com a Bolívia (Tabela 2), mas já é possível reconhecer a sua importância no cenário das migrações bolivianas no Brasil.
Como dito anteriormente, embora a crescente presença boliviana na RMBH-MG tenha origem, primeiro, na migração interna desses sujeitos a partir de São Paulo – motivada por questões laborais, socioeconômicas e políticas, e facilitada pelo Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do MERCOSUL, Bolívia e Chile, que garantiu, pela documentação, seu espraiamento pelo território nacional – também existe em menor escala, a migração procedente diretamente da Bolívia, em decorrência de redes sociais e migratórias acionadas com a chegada dos primeiros sujeitos à RMBH (Mapa 1).
Mapa 1. Percursos migratórios dos interlocutores da pesquisa até a RMBH-MG
Assim, Minas Gerais e seu tradicional setor têxtil passam a contar com a presença de fluxos migratórios bolivianos e, uma vez neste novo recorte, os sujeitos da pesquisa permanecem em movimento para driblar as (im)possibilidades da vida. Além do desafio de aprender o novo idioma, migrantes enfrentam, ao longo da travessia, inúmeras outras dificuldades – laborais, espaciais, sociais, culturais – que seguem permeando a vida desses sujeitos, expondo e aprofundando as vulnerabilidades que os acompanham desde a origem. Logo, muitos dos sujeitos da pesquisa optam pela migração para a RMBH-MG como alternativa às amarras que os prendiam à superexploração da sua força de trabalho, mais consolidadas em São Paulo. Este movimento não garante, porém, o rompimento do ciclo de superexploração. A principal convergência que existe entre as pessoas entrevistadas é o fato de a migração para Minas Gerais ser marcada, sobretudo nas primeiras semanas na RMBH-MG, por processos de servidão por dívida.
A “territorialização da bolivianidade”
Uma vez alcançada a RMBH-MG, os desafios da vida migrante culminam na produção de territorialidades: a do trabalho e a da moradia, a do acesso à educação e a dos cuidados com a saúde, e as produzidas para os momentos de descanso. Tais territorialidades evidenciam a dinâmica migratória, a presença dos sujeitos da pesquisa e sua (re)configuração territorial e, diante disso, propusemos a construção conceitual da “territorialização da bolivianidade”.
Este processo de reterritorialização refletiu o alto custo da terra e de vida em Belo Horizonte-MG, o que impeliu os primeiros migrantes, em sua maioria, a não se instalarem nesta metrópole e se concentrarem em áreas pontuais da região metropolitana. Desta forma, as redes migratórias se articulam na periferia (Mapa 2).
Mapa 2. Áreas de concentração das moradia dos interlocutores da pesquisa
Ribeirão das Neves-MG, que se destaca amplamente entre os municípios da RMBH-MG que abrigam bolivianas e bolivianos, tem a territorialidade construída a partir das moradias próximas e do elo cotidiano entre eles, elo que se revela em diversas situações, como quando esses migrantes compartilham entre eles a demanda da produção da costura. Assim, eles fortalecem o grupo e consolidam a presença da imigração boliviana no mercado da costura na RMBH-MG.
A “territorialidade quadra-mundo”
No espaço público de Ribeirão das Neves-MG, os sujeitos da pesquisa fazem-se presentes, sobretudo, a partir da apropriação da quadra Maura Pereira Andrade, no bairro Conjunto Henrique Sapori (Figura 1). Ela favorece a conexão entre eles, reunindo-os em comunidade e concretizando identidades, o que transforma o espaço público no novo mundo ― lugar e abrigo ― desses sujeitos. Intitulada “territorialidade quadra-mundo”, ela significa organização social, ocupação e apropriação do espaço público, imposição de poder e visibilidade, resistência. Ela é, portanto, a principal expressão da cada vez mais consolidada “territorialização da bolivianidade”.
Figura 1. Quadra-mundo, Ribeirão das Neves (Minas Gerais/Brasil)
Fonte: Foto de arquivo de campo de Juliana Carvalho Ribeiro. Banco de imagens do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/UNICAMP, 2019).
Desta forma, na “quadra-mundo”, os sujeitos da pesquisa ganham notoriedade como produtores de lugar e de território. Nela, eles estabelecem relações simbólicas e materiais com a Bolívia, compartilhando comidas típicas ― como as tucumanas ―, usando o Awayo ― tecido típico em cores vibrantes com o qual eles se aquecem ou cobrem o chão para se sentarem ―, ou, ainda, a partir da prática linguística pela comunicação em espanhol. Nesta quadra, há reuniões entre os migrantes, o que revela que o espaço é usado para além da diversão, propiciando discussões interessantes ao grupo.
Ao mesmo tempo, observa-se o pertencimento em relação ao novo espaço, sobretudo pela forte presença do futebol-resistência (Figura 2) em suas vidas ― futebol este que é representante da cultura brasileira e expressão do desejo de reterritorialização, processo alcançado com essa configuração boliviana-brasileira.
Figura 2. Bolivianos jogando futebol na quadra-mundo, Ribeirão das Neves (Minas Gerais/Brasil)
Fonte: Foto de arquivo de campo de Juliana Carvalho Ribeiro. Banco de imagens do Observatório das Migrações em São Paulo (NEPO/UNICAMP, 2019).
A “territorialidade quadra-mundo” cumpre a função, portanto, de vincular bolivianas e bolivianos, além de vincular origem e destino a partir de relações simbólicas e materiais estabelecidas nela, podendo ser classificada como a principal expressão da cada vez mais consolidada “territorialização da bolivianidade” na RMBH-MG.
A pandemia de Covid-19
A trágica pandemia suspendeu o uso da “quadra-mundo”, mas a territorialidade migrante se fortalece nas práticas sociais, inclusive entre migrantes e nacionais, neste momento de crise sanitária e econômica. Redes migratórias e redes sociais viabilizam o processo migratório e ajudam a sustentar a permanência de migrantes com a construção de laços que intensificam identidades e reforçam territorialidades. E são essas territorialidades que, além de iluminar a presença desses sujeitos, evidenciam a dinâmica migratória e a (re)configuração territorial, concretizando a “territorialização da bolivianidade”.